Literatura Portuguesa

Biblioteca particular de Fernando Pessoa está disponível online

Biblioteca particular de Fernando Pessoa está disponível online

A Casa Fernando Pessoa possui um tesouro único no mundo: a biblioteca particular desta figura maior da literatura. É muito raro conseguir-se encontrar a biblioteca inteira de um escritor com a dimensão universal de Pessoa. Os livros tendem a mover-se muito depressa: emprestam-se, perdem-se, vendem-se. Pessoa também vendeu alguns, mas deixou-nos 1142 volumes, de todos os gêneros e em vários idiomas, densamente anotados e manuscritos.

Uma biblioteca desta importância é patrimônio da humanidade. Trata-se de uma biblioteca aberta ao infinito da interpretação, bela, surpreendente e instigante, como tudo o que Fernando Pessoa criou.

Ao longo dos últimos anos só uma visita à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, permitia uma consulta à Biblioteca pessoal do poeta. Agora, todo esse acervo, constituído por 1142 volumes e pela coleção de manuscritos (ensaios e poemas) deixados pelo próprio poeta nas páginas desses livros passa a estar disponível online.

A inovação agora introduzida faz com que esta seja a primeira biblioteca portuguesa integralmente digitalizada. Deste modo, é facultado a todos os leitores, em qualquer parte do globo, o acesso ao importante legado de uma das figuras maiores da cultura portuguesa.

Biblioteca Particular de Fernando Pessoa

Leia mais em Revista Prosa, Verso e Arte.

Literatura Portuguesa

Autopsicografia – Fernando Pessoa

Uma questão que ocupou Fernando Pessoa foi a da “sinceridade do fingimento”, condição da criação literária, e que originou o poema abaixo.

Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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Fernando Pessoa

Fernando Pessoa: o poeta fingidor

Fernando Antônio Pessoa nasceu no dia 13 de junho de 1888, na cidade de Lisboa. Como era dia de Santo Antônio, padroeiro da cidade, recebeu o nome do santo como segundo nome.

Fernando Pessoa levou uma vida anônima e solitária e morreu em 1935, de cirrose hepática. Tinha 47 anos. Quando os críticos descobriram a riqueza de sua obra, ele já não podia conhecer merecida fama, que até hoje o identifica como um dos maiores escritores de Língua Portuguesa.

Quando se estuda a obra poética de Pessoa, é necessário fazer uma distinção entre todos os poemas que assinou com o seu nome verdadeiro – poesia ortônima – e todos os outros, atribuídos a diferentes heterônimos, dentre os quais destacam-se Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

O fenômeno da heteronímia resolve uma questão que persegue Fernando Pessoa durante toda a sua vida: o desdobramento do “eu”, a multiplicação de identidades. Outra questão que o ocupou foi a da “sinceridade do fingimento”, condição da criação literária, e que originou o poema abaixo.

 Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter, a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

PESSOA, Fernando. Lírica e dramática.
In: Obras de Fernando Pessoa.

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram”, confessa Fernando Pessoa ao amigo Adolfo Casais Monteiro em carta que explica a gênese dos heterônimos.

Heterônimo: é um nome imaginário que um criador identifica como o autor de suas obras e que designa alguém com qualidades e tendências marcadamente diferentes das desse criador.

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Os heterônimos de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa é um caso único de desdobramento de si mesmo em outras personalidades poéticas. Os heterônimos de Pessoa não são máscaras literárias, não se confundem com pseudônimos. Ele não inventou personagens-poetas, mas criou obras de poetas, e, em função delas, as biografias de Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

Passagem das horas
(Álvaro de Campos)
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar erguido a um deus diferente.
[…]
Esse fragmento do poema de Álvaro de Campos ressalta uma das principais contradições do homem moderno: de um lado, a superexcitação dos sentidos; de outro, a insatisfação, a sensação de que a vida é pouco, perante tantas possibilidades, mais sonhadas que reais.

Odes de Ricardo Reis
Fragmento 1
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Fragmento 2
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
No fragmento 1, em que os versos decassílabos se alternam com redondilhas, o sujeito lírico tematiza a nossa necessidade de equilíbrio e de “inteiridade”, em oposição à fragmentação e ao exagero. No fragmento 2, com versos alternadamente de seis e duas sílabas métricas, sobressaem os sentidos da vida como passagem, como transitoriedade.

O guardador de rebanhos
(Alberto Caeiro)
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
O poema identifica o ato de pensar com a relação sensorial do corpo com o mundo, destacando a felicidade proporcionada pelos sentidos, em comunhão direta com a natureza.

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Presságio – Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

(Fernando Pessoa)

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Não sei quantas almas tenho – Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

(Fernando Pessoa)